quinta-feira, junho 29, 2006

AS PALAVRAS DOS OUTROS

Escrever não é só endireitar palavras, lançar bem a locução, moldar a frase com harmonia, leveza e beleza.
Escrever é, antes de tudo e sobretudo, um acto de honra.
Escrever é moral em acção.
Escrever é procurar o afecto confiado de quem nos lê.
Escrever é escrever para o mundo todo, mesmo, e sobretudo, quando o mundo se limite ao horizonte da tua secretária.
Escrever é perceber que o ilimite de escrever reside no limite de perceberes o ilimite da intímidade do outro.
Escrever é ter a coragem de enfrentar as palavras, depois de ter a humildade de as escutar, porque todas as palavras possuem som, tímbre, é preciso procurá-los, porque todas as palavras são objectos indomáveis.
Escrever é servirmo-nos das palavras dos outros.
Escrever é servirmo-nos dos gritos e dos silêncios das ruas.
Escrever é juntar harmoniosamente sintaxe, razão e coração.
Escrever é sentir o obscuro furor de quem nada tem, de quem nada pode, de quem nada deseja, porque esse quem foi por alguém impedido de sonhar e proíbido de ter esperança.
Escrever deve ser medular, para ser modelar.
Escrever não é uma carreira; carreira é coisa de autocarros.
Escrever é saber o que se deve dizer quando se diz o que não se quer dizer ou o que se nos impoe que deva ser calado.
Escrever é, também, e por vezes, silenciar.
Escrever é dizer AMO-TE, no interior do próprio silêncio.
Escrever é a gente julgar que, apesar de tudo, ainda vale a pena escrever.
Escrever é a cólera sufocada, a dor amordaçada, o silêncio ainda maior que o silêncio, o choro sem choro todavia choro.
Escrever é sempre escrever para muito mais longe do que quem escreve julga.



Baptista-Bastos

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